publicado a: 2018-01-15

E o primeiro trigo foi para os pardais

É com grande satisfação que passamos a ter a participação do Professor Catedrático Jubilado Joaquim Quelhas dos Santos, um grande nome da agricultura em Portugal, com uma vasta obra publicada, nomeadamente na área da nutrição vegetal, fertilidade do solo, fertilizantes e fertilização.


Irei «contar» alguns episódios que me recordo terem ocorrido nas minhas actividades de Extensão Rural, as quais foram desenvolvidas, na sua larga maioria, paralelamente ao exercício da minha carreira docente no Instituto Superior de Agronomia, mas suportadas em termos materiais, na sua maior parte, pela Empresa adubeira «Amoníaco Português».

Assumiram diversas formas, salientando-se: instalação de campos experimentais e/ou de demonstração da utilização dos fertilizantes em diferentes solos, culturas e regiões do País; divulgação, junto de Agricultores, Técnicos regionais, Associações de agricultores, e Estabelecimentos de Ensino agrário, através de palestras, colóquios, seminários e cursos intensivos; realização, durante cerca de 5 anos, de um programa radiofónico chamado «Diário Rural», emitido a nível nacional, 2 vezes por semana; publicação de textos de divulgação, sob a forma de folhetos/artigos/livros; e análise de terras com base nos resultados das quais (e de outros dados que eram enviados juntamente com as amostras) formulava os pareceres de utilização dos fertilizantes em termos de qual, quanto, quando e como deviam ser aplicados.

Saliento, desde já, a minha convicção de que estas tarefas, para além de darem cumprimento às minhas condições contratuais com a Empresa (já referidas no texto em que salientei as coincidências com as da actividade docente e técnica do Prof. Rebelo da Silva), contribuíam para que fosse dispondo de dados (e de casos) que me permitiam exercer o ensino de forma que o conhecimento científico fosse quase sempre transmitido aos alunos de um modo mais susceptível de lhes despertar curiosidade e, talvez, numa linguagem mais fácil de compreender.

Embora sabendo que os tempos são outros e que agora já não estarei aqui a falar para alunos mas para pessoas que utilizam o FB, admito que textos desta índole possam merecer alguma atenção, pelo menos para quem esteja, tenha estado, ou pense vir a estar interessado em problemas relacionados com a agricultura, em particular com os que dizem respeito à fertilidade dos solos e á fertilização.

No presente texto, vou relatar um facto que ocorreu, no início dos anos sessenta, na realização de um campo experimental (instalado no esquema de blocos casualizados com 3 repetições), com a cultura do trigo, instalado em Évora, na Herdade dos Ruivos (perto de Alcáçovas).

Tratava-se de avaliar a acção comparativa da aplicação de adubos azotados então produzidos em Portugal (sulfato de amónio, sulfonitrato de amónio, nitricoamoniacal 20,5 e ureia; e, como o solo era bastante ácido, as modalidades em que se usou o sulfato de amónio (é, de todos os adubos azotados, o que tem mais acentuada tendência para acidificar os solos em que é aplicado) foi desdobrada em duas: uma sem calagem e a outra com calagem (efectuada com calcário calcítico, usado em quantidade suficiente para a correção da acidez do solo até uma zona vizinha da neutralidade).

O ensaio decorreu normalmente e na primavera começou a observar-se um maior desenvolvimento do trigo na modalidade sulfato de amónio+calagem em relação à modalidade sulfato de amónio, a qual viria também a traduzir-se por um avanço da fase de espigamento. Nessa altura, tudo levava a crer que as produções viessem a ser muito mais elevadas.

Acontece porém que, a quando da colheita, ocorreu uma surpresa: logo no primeiro talhão em que se tinha efectuado a calagem, a quantidade de grão obtida foi até inferior à da modalidade em que a correcção não havia sido feita! Qual seria a razão?

Procedemos de seguida á observação de todos ou outros talhões e da ceara do agricultor (os campos eram sempre instalados dentro da ceara do agricultor, com a mesma cultivar de trigo, diferindo apenas, eventualmente, na fertilização que ele fazia) e verificámos que nos talhões do campo em que se tinha efectuado a calagem havia uma muito maior quantidade de espigas em que uma parte do grão já havia sido comida pelos pardais! (dispersas pelo campo, havia umas azinheiras, provavelmente da idade daquela outra de Grândola, que lhes serviam de poiso!) Porque teria acontecido isso? O trigo seria mais gostoso? Isso nunca soube.

Mas a explicação eu percebi-a com muita facilidade: já era bem sabido que uma das acções benéficas da calagem nos solos ácidos era aumentar a quantidade de fósforo em formas «assimiláveis» pelas plantas, por um lado porque acelerava a mineralização das formas de fósforo orgânico, por outro lado porque favorecia a desorção e subsequente passagem a formas assimiláveis do fósforo que antes da correção estaria «bloqueado» nos colóides minerais, nomeadamente oxi/ hidróxidos de ferro e de alumínio.

Também já era bem sabido que na nutrição das plantas o fósforo é um nutriente que induz precocidade (daí que eu costumasse sempre aconselhar um reforço da adubação quando as culturas, como por exemplo a batata, eram exploradas como primores).

Resumindo e simplificando: como o solo era ácido, ao fazer-se a calagem o trigo pode absorver mais fósforo, o desenvolvimento foi acelerado, a maturação do grão começou mais cedo, os pardais aperceberam-se disso e «fizeram pela vida». Está justificado o título que dei a esta publicação.

A terminar, só um conselho que talvez ainda hoje possa ter alguma validade para quem faça experimentação/investigação com base em ensaios de campo: antes de procederem à instalação, avaliem bem as possibilidades de minimizarem os muitos «azares» que podem surgir e de procederem, sempre, ao seu indispensável acompanhamento.

Nota: este texto ainda saiu mais longo do que eu pretendia; mas tive necessidade de fazer uma explicação prévia que me pareceu necessária. Creio que as próximas «histórias» já irão ser bem mais curtas!

Joaquim Quelhas Dos Santos

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