publicado a: 2019-05-02

Os resíduos de pesticidas e a agricultura biológica

O DICA (Divulgação de Informação do Comércio Agroalimentar) do Governo Regional (Região Autónoma da Madeira), divulgou no seu site um artigo sobre: Os resíduos de pesticidas e a agricultura biológica

Introdução

O modo de produção biológico (MPB) é um sistema de gestão agrícola e produção alimentar que combina as melhores práticas ambientais, com preocupações em termos da garantia da biodiversidade, da preservação dos recursos naturais, com padrões elevados de bem-estar animal e que apela à utilização de substâncias e processos naturais.

A utilização de pesticidas no MPB é bastante limitada, contudo, porque todo o circuito de produção, armazenamento, transporte, processamento e comercialização ocorre num sistema aberto, onde são utilizados pesticidas e biocidas, é sempre possível que estes possam ser detetados nos controlos de resíduos levados a efeito pelos organismos de certificação (OC) ou pelos serviços oficiais de controlo.

Os resíduos detetados podem ter fundamentalmente duas origens: i) fraude (utilização ilegal de pesticidas na produção ou mistura com produtos convencionais) ou ii) contaminação (sem que esteja associada a qualquer intervenção do produtor). Apesar de existirem técnicas para apuramento da sua origem, é quase impossível distinguir as duas fontes de resíduos.

As análises de resíduos são um dos instrumentos mais importantes utilizados no controlo do MPB. Tanto os OC como os organismos oficiais de controlo podem colher e analisar amostras para se inteirarem da presença de produtos não autorizados, confirmarem a utilização de técnicas interditas ou avaliarem a ocorrência de contaminações. Cada OC tem a obrigatoriedade prevista no Artigo 65 do Regulamento (CE) n.º 889/2008 de colher amostras em, pelo menos, 5% dos operadores sob seu controlo. Esta pequena percentagem representará um esforço financeiro significativo dada a multiplicidade de substâncias ativas que devem de ser analisadas e que têm de atingir várias centenas para que o espectro analítico coberto possa ser considerado adequado.

Limiares permitidos

Ao contrário do que acontece, por exemplo, com os alimentos infantis, para os quais está definido um limite máximo de resíduo (LMR) de 0,01 mg kg-1 [1] [2] [3], não existe qualquer LMR definido para a agricultura biológica nem qualquer guia da Comissão Europeia dedicado à interpretação dos resultados analíticos. [4] [5].

Em 2001, a associação alemã Bundesverband Naturkost Naturwaren Herstellung und Handel (BNN) acordou, entre os seus membros, o estabelecimento de um valor de orientação de 0,010 mg kg-1. Este primeiro valor de orientação foi posteriormente generalizado e adotado na Europa por diversas organizações do sector como as associações suíças de produtores biológicos Bio Suiss e Switzerland Migros Bio [4].

Em 2012, a International Federation of Organic Agriculture Movements (IFOAM), a mais importante organização mundial do sector [4] [5], seguiu o mesmo limiar da BNN designando-o de “nível de ação” [6] mas mantendo o seu carácter de nível orientador. Também a European Organic Certifiers Council (EOCC) uma organização que representa os organismos de certificação, adotou o mesmo limite de ação de 0,010 mg kg-1.

A não satisfação deste limiar não determina, para qualquer das organizações, a despromoção imediata dos produtos biológicos (BIO) ou a sua interdição de comercialização.

Nos Estados Unidos, o limiar de 0,010 mg kg-1 é também utilizado como referência, ocorrendo interdição da comercialização do produto como BIO se o teor doseado for superior a 5% da tolerância estabelecida pela Environmental Protection Agency (EPA) ou superior a 5% do limite de ação estabelecido pela U.S. Food and Drug Administration (FDA), que tem à sua responsabilidade o controlo dos produtos proibidos. Quando o pesticida detetado não possui um limiar de referência estabelecido, a interdição processa-se com a ultrapassagem do limiar de 0,010 mg kg-1 [7].

Na Itália, o LMR oficial estabelecido por Decreto Ministerial para os produtos BIO é 0,010 mg kg-1. Na Bélgica, que possui uma legislação específica, está estabelecido que, se um teor de resíduo for superior a 1,5 x LOQ (limite de quantificação) um produto não pode ser comercializado como BIO e o OC tem de despromover o produto [4] [8]. Se no seguimento da investigação for confirmada a existência de uma fraude, o produtor sofre uma penalidade. Teores mais baixos dão origem a uma investigação mas o produto não é imediatamente suspenso.

A análise destas diferentes abordagens permite concluir que, quando o limiar de referência é considerado como puramente orientador, a sua ultrapassagem determina apenas uma suspeição devendo-se dar origem à investigação preconizada no Artigo 91 do Regulamento (CE) N.º 889/2008. Quando o limiar de referência é tido como crítico, a sua ultrapassagem leva automaticamente à despromoção do produto, independentemente de ser ou não iniciada uma investigação.

A situação em Portugal

Portugal, através da Direção Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural, adotou as orientações constantes do documento da IFOAM “Guideline for pesticide residue Contamination for International Trade in Organic” [9].

De acordo com a IFOAM a agricultura biológica é um modo de produção cujo controlo não deve ser reduzido ou limitado à investigação da ausência / presença de resíduos acima de um determinado nível. Legalmente, de acordo com o Artigo 91 do Regulamento (CE) N.º 889/2008, cada contaminação deve ser considerada como suspeita, como se o produto não tivesse sido produzido de acordo com as regras do MPB. Com a adoção do seu limite de ação, a IFOAM considera que, sempre que este limiar seja ultrapassado, o produto passa a estar nesta condição de suspeito e sua comercialização deverá ser provisoriamente suspensa. Se, após a investigação, a suspeita de fraude não consegue ser dissipada, a suspeita passa a ser fundamentada e o produto não pode ser comercializado como BIO.

A IFOAM recomenda:

- Adoção de 0,010 mg/kg como nível de ação, com uma tolerância de 50%;

- Adoção de fatores de processamento, por forma a recalcular os teores no produto fresco;

- Não mais que dois resíduos acima de 0,010 mg kg-1 podem estar presentes. Se duas substâncias são detetadas acima de 0,010 mg kg-1, a produção torna-se suspeita. Nestes casos não deve ser considerada a tolerância de 50%;

- Deteções sucessivas (mais que três vezes) do mesmo resíduo em diferentes lotes do mesmo produto, com resíduos abaixo do limite de ação, devem dar origem a uma investigação;

- Um produto com resíduos acima de 0,010 mg kg-1 não deve ser comercializado ou processado. Só o poderá ser após confirmação, por parte do OC, de que a sua produção e processamento foram feitos de acordo com MPB.

A IFOAM propõe ainda algumas exceções:

- O limite de ação de 0,010 mg kg-1 não se aplica ao ião brometo (limite de 5 mg/kg) nem ao sulfureto de carbono, pelo facto destes poderem ocorrer naturalmente em determinados produtos;

- No caso de resíduos persistentes (como DDT, endrina, aldrina, etc.) é possível aceitar ultrapassagens ao limite de ação se os OC confirmarem a sua não utilização e desde que os respetivos LMR não sejam ultrapassados;

- O limiar de 0,010 mg kg-1 não se aplica ainda aos pesticidas autorizados para o MPB, listados no Anexo II do Regulamento (CE) N.º 889/2008, que devem obedecer ao respetivos LMR (e.g. espinosade). Também não se aplica ao butóxido de piperonilo quando este estiver permitido pelo OC.

Penalidades previstas

Pelo facto de não estarem estabelecidos LMR específicos para os produtos BIO, estes têm de cumprir com os LMR estabelecidos pelo Regulamento (CE) N.º 396/2005 que se aplicam, de igual modo, tanto aos produtos BIO como aos convencionais [10]. Para além das penalidades que possam ser aplicadas pelos OC, o não cumprimento dos LMR constitui uma infração ao Regulamento (UE) N.º 310/2011 de 28 de março, que altera o Regulamento (CE) N.º 396/2005, de 23/02, passível de contraordenação prevista no Decreto- Lei N.º 39/2009 de 10 de fevereiro. Tal como para a produção convencional, sempre que um determinado pesticida não estiver autorizado para uma determinada cultura, o teor detetado não poderá ser superior ao respetivo limite de quantificação (LQ), referido no Regulamento (CE) N.º 396/2005como “Limite de Determinação”, e que representa a “menor concentração de resíduos (…) que pode ser quantificada (…)” com um nível aceitável de exatidão. Esta presença poderá indiciar um incumprimento das condições de utilização autorizadas, situação que, de acordo com a Lei 26/2013, será passível de contraordenação sem que para tal esteja considerada a investigação prevista no Artigo 91 do Regulamento (CE) N.º 889/2008.

Impacto da incerteza dos resultados

Todos os resultados analíticos são afetados de uma incerteza que considera todas as potenciais fontes de erros, aleatórios e sistemáticos, que ocorrem nos laboratórios. Esta incerteza tem de estar refletida nos relatórios de ensaio [11] delimitando, com um nível de confiança adequado, um intervalo em que o valor “verdadeiro” se deverá encontrar. A avaliação de um largo número de testes aos laboratórios participantes nos programas de controlo europeus permitiu à Comissão Europeia fixar um valor de 50% que deverá ser considerado em todos os resultados analíticos de resíduos de pesticidas [12]. Considerando um limite de ação de 0,010 mg kg-1, um produto com um teor menor que 0,021 mg kg-1estará sempre conforme. Por outro lado, um agente económico que tencione colocar a sua produção num mercado em que este mesmo limite de ação esteja adotado, deverá garantir que a concentração de um determinado pesticida nos seus produtos não poderá exceder os 0,006 mg kg-1.





Referências:

[1] Comissão Europeia, “Directiva 2006/141/CE da Comissão de 22 de Dezembro de 2006 relativa às fórmulas para lactentes e fórmulas de transição e que altera a Directiva 1999/21/CE.,” JO L 401 de 30.12.2006, 2006.

[2] Comissão Europeia, “Directiva 2006/125/CE da Comissão, de 5 de Dezembro de 2006 , relativa aos alimentos à base de cereais e aos alimentos para bebés destinados a lactentes e crianças jovens,” JO L 339, 6.12.2006, 2006.

[3] Comissão Europeia, “Regulamento Delegado (UE) 2016/127 da Comissão de 25 de setembro de 2015,” JO L 25 de 2.2.2016, 2016.

[4] Bernhard Speiser, Regula Bickel, Beat Huber and Jiri Urban, “Guideline for handling pesticide residues in Czech organic production. Jun 6,” FIBL, 2013.

[5] O. Tiryaki, “Pesticide Residues and Organic Production,” J. BIOL. ENVIRON. SCI., 2017, 11(31), pp. 11-23, 2017.

[6] IFOAM, “Guideline for Pesticide Residue Contamination for International Trade in Organic Version August 3,2011, updated March 12,” IFOAM EU GROUP, Brussels, 2012.

[7] United States Department of Agriculture -Agricultural Marketing Service -National Organic Program, “Responding to Results from Pesticide Residue Testing NOP 2613 Rev 02; 13- 9-2018,” 2018.

[8] “BioForum’s position on the IFOAM EU Guidelines for Pesticide Residues in organic,” [Online]. Disponível em: http://www.securbio.fr/BibliRessources/PagesSystem/ViewNodeFile.ashx?idnode=1073.

[9] DGADR, “MPB: Harmonização de regras de controlo relativas à análise de resíduos,” 2013. [Online]. Disponível em: https://www.ivv.gov.pt/np4/file/8621/image2013_03_05_172405.pdf.

[10] European Food Safety Authority, “Monitoring data on pesticide residues in food: results on organic versus conventionally produced food.TECHNICAL REPORT 2018,” EFSA, 2018.

[11] International Organization for Standardization, “General requirements for the competence of testing and calibration laboratories- ISO/IEC 17025:2017(E),” 2017.

[12] European Commission, DG-SANTE, “Guidance document on analytical quality control and method validation procedures for pesticide - SANTE/11813/2017 Rev.0,” 2017.


Paulo Fernandes
Divisão de Análises Veterinárias e Agroalimentares
Direção de Serviços dos Laboratórios e Investigação Agroalimentar
Direção Regional de Agricultura

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