publicado a: 2018-10-15

Artigo de Opinião de Pedro Garcias - Colheita de 2018: provavelmente a melhor deste século

Se em Portugal existisse a tradição das vendas de vinhos en primeur (ainda antes de serem engarrafados e chegarem ao mercado), valia a pena fazer já algumas compras de vinhos da colheita de 2018. Em algumas regiões ainda se vindima, mas do que se conhece pode afirmar-se com segurança que o ano de 2018 vai ter um lugar reservado na galeria das colheitas antológicas em Portugal. Sobretudo nos tintos. Com alguma probabilidade, poderá ser mesmo a melhor deste século — e nestes 18 anos já houve várias colheitas extraordinárias.

Falo de qualidade. Em quantidade, foi menor. Houve muitos problemas um pouco por todo o país, como queda de granizo, ataques severos de míldio e escaldão. No início de Agosto, quando as temperaturas se aproximaram dos 50 graus durante alguns dias, o cenário era quase catastrófico. As uvas mais expostas cozeram e secaram e o que se começou a ver em muitas vinhas — cachos ressequidos ao pendurão — fez aumentar ainda mais o ambiente depressivo que se havia instalado com as trovoadas da Primavera e o avanço do míldio. Mas, curiosa ironia, a vaga de calor dos primeiros dias de Agosto acabou por ter algo de providencial, porque permitiu estancar o míldio (a partir de certa temperatura, a doença deixa de progredir) e poupar os viticultores a mais tratamentos fitossanitários.

Ao contrário do oídio, o míldio não afecta a qualidade do vinho, apenas influi na quantidade. Depois de atacadas, as uvas ou não nascem ou secam. Ora, menos uvas é quase sempre sinónimo de maior qualidade. No Douro, o povo diz que “ano de míldio é ano vintage”. Claro que ano “vintage” para uns é ano horribilis para outros, sobretudo para aqueles que dependem da venda de uvas. Houve gente que perdeu quase tudo nesta colheita. Esses, e foram muitos, não terão boas recordações de 2018, nem merecem que se fale em vindima gloriosa. Seria gloriosa se fosse genericamente muito produtiva e de grande qualidade.

Vindimas dessas acontecem muito raramente. E, com as alterações climáticas, a probabilidade de acontecerem é, em boa verdade, mais diminuta. Há cada vez mais fenómenos climáticos extremos e os ciclos da vinha tornaram-se mais imprevisíveis.

Neste ano agrícola, o Inverno foi frio e seco, o que é sempre bom para a necessária dormência da vinha. Mas foi também pouco chuvoso (68% abaixo do valor médio). No final da estação, 84% do território nacional estava em seca severa e extrema. Na colheita de 2017, as vinhas já chegaram ao final do seu ciclo em completo stress hídrico. Uma Primavera pouco chuvosa e um Verão novamente seco e seria uma tragédia. A videira, apesar de muito resistente, também tem os seus limites. Mas a Primavera prolongou o frio do Inverno e trouxe muita chuva (e muito míldio, como já foi dito). Foi a terceira Primavera mais chuvosa desde 1931. Encheram-se as barragens e as terras de água e o frio foi atrasando a rebentação da vinha. Em 2017, quando chegámos a Agosto, as uvas estavam prontas a vindimar, apanhando toda a gente de surpresa. Este ano, o Verão chegou tarde e a maturação foi-se alongando no tempo certo, arrastando o grosso da vindima para Setembro e Outubro, como antigamente. A partir de Setembro, a amplitude térmica também foi aumentando (dias quentes e noites mais frescas) e o fim da maturação decorreu nas condições ideais, com tempo seco.

Foi uma vindima sem chuva e isso é sempre um factor determinante na qualidade da produção. Mas o que verdadeiramente distingue a colheita de 2018 é o extraordinário equilíbrio dos vinhos. No Douro, por exemplo, as uvas chegaram perfeitas à adega, sãs e com um equilíbrio pouco comum em termos de acidez e álcool provável. “Em tintos, é uma vindima muitíssima boa, das mais equilibradas que tenho visto. Tanto para DOC Douro como para Porto. Nos brancos, é uma colheita boa, não extraordinária”, assegura Luís Sottomayor, o director de enologia da Casa Ferreirinha.

Nos Vinhos Verdes, em particular em Monção-Melgaço, “a vindima de 2017 já tinha sido a melhor desta década, mas esta ainda vai ser melhor”, garante Anselmo Mendes. “Os brancos de Loureiro estão fabulosos e os Alvarinho não perderam tanta acidez como no ano passado. Estão menos tropicais. Têm o perfume antigo do Alvarinho, mais a flores e menos a peras e outras frutas”, acrescenta.

Na Bairrada, a única queixa é para a quebra na produção. Luís Pato, por exemplo, perdeu 70% da produção de Touriga Nacional, que usa para os seus vinhos de entrada de gama. “A qualidade é muito boa porque, com as perdas, concentrou mais. Colhemos Baga com 13 de álcool e 6,5 de acidez, o que é fantástico. Há um maior equilíbrio álcool/açúcar em relação a 2016, por exemplo. As colheitas de 2017 e de 2015 também foram muito boas”, diz.

Paulo Nunes faz vinhos no Dão (Casa da Passarella), Bairrada (Casa de Saima) Douro (Costa Boal) e Trás-os-Montes (Palácio dos Távoras) e o que tem visto em todas as adegas onde trabalha “é muito, muito bom”. “No Dão, vinhos com este equilíbrio só me lembro dos de 2008 e mesmo esses não sei se chegam ao nível dos deste ano”, afirma.

Onde parece haver mais dúvidas é no Alentejo. Joana Roque do Vale, enóloga da Roquevale, diz que está a ser um ano difícil na adega, por causa dos problemas que ocorreram na vinha com o escaldão e o míldio e também alguma podridão, embora, regra geral, os vinhos sejam “muito bons”. Por seu lado, Rui Reguinga fala num cenário a duas cores: “Os brancos estão belíssimos, com boa fruta e boa acidez. Mas os tintos são mais difíceis de entender. No Alentejo, costumamos acabar a vindima com os tintos quase prontos a ir para a garrafa. Este ano estão mais austeros, mais ácidos e um pouco mais duros.”

Os vinhos precisam de tempo para se mostrarem. Após o Inverno, já se saberá com mais certeza se a colheita de 2018 é, como tudo indica, realmente fabulosa. A única verdade inquestionável que já se pode avançar é do domínio da viticultura: as castas que melhor resistiram aos fenómenos climatéricos deste ano e ao míldio foram as castas tradicionais. As castas “novas”, estrangeiras ou nacionais plantadas fora da região tradicional, “levaram um porradão”, como bem observava Luís Pato. Não vale a pena querer contrariar a natureza, nem muito menos ignorar a sabedoria dos antigos.

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