publicado a: 2018-10-08

Salvar a floresta? Partidos têm de "passar à prática" e chamar quem sabe

O que tecnicamente deve ser feito pela floresta já está definido ou até em prática. Mas não chega. A Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sector Florestal quer 'pôr mãos à floresta' e vai começar por lançar um desafio ao Governo e forças políticas. Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o presidente da ANESF deixa um apelo à "coragem" para que um "pacto de regime" seja posto em prática com a ajuda de quem sabe: engenheiros e técnicos do sector.

Para encontrar um ano semelhante a 2017 é preciso recuarmos até 2003, quando os incêndios florestais consumiram mais de 420 mil hectares (o equivalente ao mesmo número de campos de futebol). Mas, no ano passado, este número foi ainda superior: 500 mil hectares arderam (só) entre 17 de junho e 15 de outubro.

Foi o pior ano de sempre e que a memória não deixará esquecer. Mais de 160 pessoas perderam a vida a combater os fogos, a tentar proteger os bens que custaram uma vida a conseguir, ou porque a força do fogo foi tão implacável que todos os que tentavam fugir a apanhou.

Mas, afinal, o que aprendemos? O que fizemos de diferente? Estamos a proteger melhor a nossa florestal? A prevenção está a ter resultados? E o Governo está a ser seguir o caminho certo para evitar tragédias como a que Portugal viveu em 2017?

‘Nim’. Esta é a posição da Associação Nacional dos Engenheiros e Técnicos do Sector Florestal (ANESF), alertando que “há ainda muitos atos e decisões” tomados “por quem não possui conhecimentos nem habilitações adequadas para o efeito”. E a “prova” está nos “incêndios que devastaram o país em 2017”. Além disso, “faltam meios e a coragem” para pôr em prática medidas como, por exemplo, a lei de bases da política florestal (aprovada por unanimidade no Parlamento) e os instrumentos legais aos dispor para gerir “bem a nossa floresta”.

Mas porque isso não se faz, alerta o engenheiro e presidente da ANESF, Miguel Serrão, em “ciclos eleitorais de quatro anos”, é preciso intervir desde já e estabelecer “um pacto de regime para a floresta” que, em parceria com governos, partidos, municípios, e sociedade civil, promova o “sector florestal”, através do “ordenamento e gestão do território” e da “segurança efetiva” das populações.

Acontece que para que tal aconteça e ‘dê frutos’ é preciso chamar quem sabe a colaborar. “Este é o papel que os engenheiros e técnicos florestais têm [e querer] desempenhar” porque “é no melhor conhecimento (…) que têm de ser apoiadas as orientações políticas, as opções de planeamento e as decisões de gestão”.

A ANESF prepara-se assim para pôr ‘mãos à floresta’. E como? Quando se assinala um ano dos incêndios de outubro vai, através de um manifesto, desafiar os “partidos com assento parlamentar (…) a estabelecer um pacto de regime para a floresta”. É “necessário passar das palavras à prática” e, sugere a ANESF, “consignar receitas no Orçamento do Estado, que permitam assegurar os meios humanos e materiais para executar no terreno o que precisa ser feito”.

É preciso a todo o custo evitar tragédias como a que assistimos em 2017, mas é necessário agir porque “as florestas são ecossistemas extremamente complexos que demoram décadas a desenvolver”. Além disso, as florestas e o seu estado têm implicações na economia, no emprego, na conservação da natureza e na biodiversidade, “mas acima de tudo a segurança dos cidadãos”.

Deste modo, a ANESF entende que a sua participação nesta discussão é essencial para o bem da floresta e de todos. E porque não foge a essa ‘responsabilidade’ vai propor “um pacto de regime” para a política florestal. Em entrevista, por escrito, ao Notícias ao Minuto, dias antes de ser apresentado o manifesto, o presidente da ANESF, Miguel Serrão, explicou o que está em causa.

NM: Considera que os incêndios de junho e outubro de 2017 foram uma falha estratégica ou uma tragédia há muito anunciada?

MS: Foram a resultante de uma falha estrutural e previsível, consequência das políticas que têm sido seguidas pelos sucessivos governos deste país.

Têm estado, até agora, os engenheiros e técnicos do sector florestal à margem das decisões sobre a nossa floresta?

A generalidade das decisões políticas não estão a ser tecnicamente informadas e quando o são, não o são por engenheiros e técnicos florestais, mas sim por quem não conhece a realidade do terreno. Mesmo as poucas decisões que são informadas tecnicamente por engenheiros e técnicos florestais, são inconsequentes na sua implementação, em muito por falta de coragem política.

Querem com o manifesto marcar a vossa posição, mas também estabelecer um “pacto de regime”. Como tencionam fazê-lo? Como que medidas concretas tencionam pô-lo em prática e convencer as forças políticas e autoridades do setor, como a Proteção Civil?

Os pactos de regime têm que resultar de uma negociação séria e consequente entre as diversos partidos do arco da governação, com o sentido de responsabilidade e dever público que a sociedade em geral espera da sua atuação. Os pactos de regime devem criar as condições para uma ação política orientada e consequente, com horizontes temporais alargados, para resolver questões que ultrapassam largamente os ciclos eleitorais e para os quais são necessários recursos que são igual e legitimamente disputados por outros setores. Quando as forças políticas aprovaram por unanimidade a Lei de Bases do Setor Florestal, aprovaram um conjunto de orientações estruturais que assumiram como as mais adequadas para o desenvolvimento da floresta. Posteriormente, foi aprovado e aplaudido o Plano para o Desenvolvimento Sustentável da Floresta Portuguesa. Mais tarde, a Estratégia Nacional para as Florestas veio no essencial reforçar as linhas de orientação e medidas do Plano para o Desenvolvimento Sustentável da Floresta Portuguesa. Na sequência dos dramáticos incêndios de 2003 foi aprovado o Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios, que não foi alvo de qualquer contestação. Apenas para citar alguns dos elementos legais e regulamentares mais relevantes do infindo e profícuo edifício legislativo que recai sobre a floresta. Portanto, e como é por nós afirmado, as medidas que tecnicamente devem ser implementadas já estão todas definidas. O que tem falhado é a operacionalização das medidas. E porquê? Por falta de meios e de coragem política.

Recentemente, o Governo anunciou que vai criar um centro de competências formativo para as temáticas associadas à floresta. Foram chamados a participar ou a integrar este futuro centro?

Não. A ANESF não foi chamada a este processo. Para a ANESF os centros de competências são de grande importância, mas não podem ficar-se apenas pelo fausto da inauguração e depois definharem sem meios para funcionar, como infelizmente já assistimos vezes demais acontecer. E, apesar do conhecimento científico estar em permanente evolução e dever ser um investimento prioritário e continuado para o desenvolvimento de um país: é por demais conhecido o que é necessário fazer. É preciso é fazê-lo!

São, por exemplo, medidas como o anúncio de 28 milhões de euros para substituição de espécies de crescimento rápido em áreas ardidas, um caminho favorável à gestão da floresta?

Com certeza que todos os apoios que se conseguir canalizar para a floresta podem ajudar, mas a substituição de espécies, só por si, não resolve o problema da ausência da gestão da floresta. É preciso que o ciclo de abandono da floresta seja interrompido. É preciso conhecer para gerir e o déficit de informação sobre a floresta portuguesa é clamoroso. Os inventários florestais disponíveis têm mais de uma década, o estado sanitário é quase desconhecido, as invasoras lenhosas (acácias) expandem-se pelo país sem qualquer controlo e monitorização. O caminho da gestão passa por uma aposta clara na valorização do que se pode obter da floresta, como seja: uso prioritário da madeira em construções públicas; continuar a apostar nos novos usos de valor acrescentado da cortiça; promover e acrescentar valor à resina nacional; mas também remunerar os serviços que a floresta presta (proteção do solo, água, ar, paisagem, etc..). Esta valorização tem que chegar e ser reconhecida pelo proprietário, para que ele não abandone desiludido a floresta e possa cuidar dela.

As alterações climáticas são já uma evidência. Como tenciona defender uma aposta a longo prazo, para lá dos habituais "ciclos eleitorais de quatro anos", se o próprio ambiente está em constante mudança?

Com informação atualizada e disponível. As alterações de climáticas não se iniciaram no ano passado. São conhecidas desde há muito e têm sido anunciadas pela comunidade científica. Sucede que a sua expressão não é um contínuo que se expressa por um aumento sistemático do período de verão, ou uma redução paulatina das temperaturas de inverno. Expressa-se pelo aumento da frequência de fenómenos extremos (secas; invernos amenos; nevões anormais; chuvas violentas fora de época,..) que ao longo de séries temporais de 20/30 anos revelam aumentos globais da temperatura média, diminuição da média anual de precipitação, aumento da temperatura da água dos mares e avanço dos desertos. Esta previsibilidade do clima, permite antever o que tecnicamente se pode e deve fazer, para mitigar essas alterações, é preciso é conhecer e não ter receio de implementar as soluções necessárias.

E a sociedade civil, que papel entende que tem no cuidado e proteção da floresta?

Portugal tem 1/3 do seu território coberto por espaços florestais e é em simultâneo o país do mundo com menos floresta pública e mais privada. Por isso, é incontornável o papel da sociedade civil em todas as matérias que envolvem a gestão do território e em particular da floresta. No entanto, compete ao Estado a criação do enquadramento adequado ao desenvolvimento, exploração sustentável e proteção dos recursos naturais do país. E como se faz? Valorizando os produtos e serviços da floresta, chamando ao processo as melhores competências e capacidades técnicas existentes, informando e divulgando o conhecimento existente, envolvendo as organizações da sociedade civil na decisão e tendo a coragem política para priorizar a disponibilização dos meios necessários. O que não é razoável é impor medidas mediaticamente apelativas, mas tecnicamente desajustadas e inconsequentes na sua eficácia.

Se pudesse, que medida sugeria pôr em prática imediatamente?

A sugestão está feita. As medidas são conhecidas e urge serem implementadas na sua grande maioria. A implementação de uma medida isolada poderá ser uma bandeira interessante, mas é tão relevante como uma gota de água no deserto: se não cairem mais evapora e de nada serviu. Num contexto de restrições orçamentais e solicitações crescentes, sugeríamos ao governo que procurasse alcançar um pacto de regime com todas as forças políticas com assento parlamentar, para garantir verbas no Orçamento de Estado dos próximos dez anos de modo a assegurar os meios necessários para implementação do Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios, das medidas definidas na Estratégia Nacional para as Florestas e agir com transparência disponibilizando informação atualizada sobre o estado da floresta e a implementação destas medidas. E acima de tudo dar o exemplo: Gerir exemplarmente as florestas sob sua tutela!

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